Jovens maias da Guatemala. Eric Waltr, Wikimedia commons |
Quando os colonizadores europeus chegaram à s Américas, o continente era habitado por cerca de 57,3 milhões de indÃgenas, segundo estimativas do geógrafo norte-americano William M. Denevan. Mais de 500 anos depois, a população total do continente saltou para um número próximo a um bilhão de habitantes, entre os quais, apenas 45 milhões de indÃgenas, conforme revela o último levantamento populacional da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), feito em 2014.
Na época desse levantamento, a Cepal comemorou os avanços que vinham ocorrendo desde o inÃcio do atual milênio, em relação à proteção dos povos indÃgenas e ao reconhecimento de seus direitos territoriais. Mas, nos últimos anos, o otimismo recrudesceu. O Brasil faz parte das principais preocupações, diante das constantes notÃcias de aumento do desmatamento da Floresta Amazônica e do avanço de garimpeiros e fazendeiros sobre os territórios indÃgenas. Relatório de 2019 da mesma instituição ainda constata que o contingente indÃgena das Américas não apenas está entre as populações mais pobres do continente, mas também que sua pobreza é 26% maior que a dos não indÃgenas.
GenocÃdio: o fator epidemiológico
Guerreiro asteca, século XVI. Códice Florentino, Wikimedia commons |
Com a pandemia da Covid-19, o alerta vermelho voltou a acender na Cepal. Até porque a disseminação de doenças contagiosas foi uma das maiores responsáveis pelo genocÃdio dos indÃgenas americanos, tido como o maior de toda a história da humanidade. Em 2017, pesquisadores alemães, por meio de dissecação de múmias, descobriram que a epidemia de ‘cocoliztli’ (‘peste’ na lÃngua náuatle), que entre 1545 e 1550 dizimou 80% dos astecas (cerca de 15 milhões), era na verdade a febre tifoide trazida da Europa pelos espanhóis.
Entre outros exemplos possÃveis de propagação de doenças contagiosas entre os povos indÃgenas, está o caso de Antônio Salema, governador-geral da porção Sul do Brasil entre 1575 e 1578. Segundo vários historiadores, ele exterminou os Tamoios que habitavam a região do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas espalhando, no local, pertences de doentes contaminados pela varÃola. O fato é que, seja por causa das epidemias ou dos enfrentamentos bélicos, a estimativa mais aceita pelos pesquisadores é que, cerca de 130 anos após a chegada dos colonizadores, a população dos povos originários das Américas havia diminuÃdo em 90%, sendo que, no Caribe, quase foi exterminada em menos de meio século.
Em meados de 2020, os povos originários das Américas estão enfrentando um número crescente de casos de Covid-19, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). De acordo com a Articulação dos Povos IndÃgenas do Brasil (Apib), um terço dos indÃgenas brasileiros costumam morrer de doenças respiratórias, de forma que a preocupação com a pandemia é grande. A Opas solicitou que as autoridades dos diversos paÃses redobrassem os esforços para impedir a propagação da doença nas comunidades e garantissem o acesso delas aos serviços de saúde.
Apesar disso, contingente expressivo de indÃgenas do continente continua tendo problemas para enfrentar a doença, como a falta de informações, a escassez de medicamentos, de alimentos e de material de higiene, além das dificuldades de deslocamento para levar, rapidamente, um doente até o hospital mais próximo. Na América Hispânica, as informações para combate à pandemia têm sido dadas em lÃngua espanhola, a despeito de milhares de comunidades indÃgenas que não falam castelhano. Só no Peru, quatro milhões de habitantes se encaixam neste quadro, agravado por causa da situação dos rios da Amazônia peruana que, há décadas, estão tingidos de petróleo, dificultando o acesso dos nativos à água potável.
A questão territorial
Chegada de Cristóvão Colombo à América. Gravura de Theodor de Bry, Wikimedia commons |
Segundo a Cepal, os colonizadores europeus se valeram do conceito de terra nullius – quando os territórios não eram povoados ou pertenciam aos chamados povos bárbaros – para se apropriarem do continente americano. Aqui no Brasil, a Coroa portuguesa adotou o sistema de capitanias hereditárias e de concessão de sesmarias para a distribuição das terras. Os territórios que não foram doados ou não ingressaram no domÃnio privado por tÃtulo legÃtimo chamavam-se ‘terras devolutas’ e, com a independência, passaram a integrar o domÃnio imobiliário do Estado brasileiro.
A desapropriação dos territórios indÃgenas se aprofundou com os processos de independência das colônias europeias nas Américas. Ainda conforme a Cepal, no fim do século XIX, a doutrina de terra nullius passou a ser justificada pela necessidade da geopolÃtica e da expansão das fronteiras agrÃcolas e pecuárias, com campanhas militares que continuaram dizimando os povos indÃgenas do continente. Em meados do século XX, com os processos de colonização na Amazônia e outras zonas periféricas da região, iniciou-se mais um ciclo de desterritorialização dos povos indÃgenas.
Diante do aprofundamento dos conflitos, uma Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, estabeleceu, entre outras coisas, o direito dos indÃgenas sobre a posse das terras que tradicionalmente ocupam ou ocupavam para a realização de suas atividades de subsistência. Houve avanços no reconhecimento desses territórios, em todo o continente, muito embora os confrontos não tenham cessado em várias regiões, principalmente aquelas onde há interesses relacionados à extração mineral e à expansão das fronteiras agrÃcolas.
No Brasil atual, garimpeiros e fazendeiros têm avançado sobre alguns territórios indÃgenas já reconhecidos e demarcados. A disputa sobre a posse das terras ainda é, muitas vezes, perpassada pelo conceito de terras devolutas. No caso dos guaranis que vivem próximos à fronteira com o Paraguai, no Mato Grosso do Sul, fazendeiros afirmam que tal conceito foi utilizado em lei do final do século XIX, que concedeu o direito à empresa Matte Laranjeiras de explorar as terras da região, de forma que, desde aquela época, os territórios reivindicados pelos indÃgenas não pertenciam mais a eles.
Demografia
Xamã guarani. Roosewelt Pinheiro, Agência Brasil, creative commons |
Segundo a Cepal, baseada em dados censitários dos paÃses, o México possui a maior população indÃgena das Américas (cerca de 17 milhões), seguido do Peru (7 milhões), da BolÃvia (6,2 milhões) e da Guatemala (5,9 milhões). Mas quando se fala de números relativos, a posição não é a mesma. Na BolÃvia, eles representam 62,2% do total de habitantes, na Guatemala 41%, no Peru 24% e no México 15%. A maioria dos indÃgenas que moram nesses paÃses são oriundos das civilizações pré-colombianas tidas como as mais avançadas do continente: inca, maia e asteca.
No caso do Peru e da BolÃvia, as etnias mais numerosas são as dos indÃgenas quéchuas (incas) – também encontrados nos Andes do Equador, Chile e Argentina – e aimarás, civilização que, no inÃcio da colonização espanhola estava subjugada pelos incas, mas que tinha enorme habilidade de sobreviver no clima andino e mantinha estoques de comida por meio de técnicas de irrigação, de congelamento e de desidratação dos alimentos, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro. Os quéchuas, ainda de acordo com Ribeiro, haviam desenvolvido conhecimentos de astronomia e matemática, técnicas de construção, de engenharia hidráulica, agricultura irrigada e metalurgia. No Peru e na BolÃvia, também há indÃgenas amazônicos e, no caso especÃfico da BolÃvia, ainda há comunidades de origem guarani, também existentes no Paraguai, Uruguai, Argentina e Brasil.
No México, há mais de 60 etnias. Os nauátles, de origem asteca, compõem o grupo mais numeroso, seguido pelos maias, zapotecas, mixtecas, otomis, totonaclas... Embora cerca de 80% dos astecas tivessem desaparecido nos primeiros 150 anos de colonização, algumas elites da civilização continuaram a manter o status, como é o caso de um membro da dinastia Moctezuma, que se casou com uma representante da aristocracia espanhola. Além de ter ganhado o tÃtulo de Conde, foi vice-rei do México de 1696 a 1701. A ele sucederam vários outros Condes de Moctezuma, sendo que o 14º teve seu tÃtulo elevado para duque.
Mulheres aimarás, BolÃvia. Micah Mac Allen, Wikimedia commons |
No perÃodo pré-colombiano, os maias, maioria absoluta dos indÃgenas da Guatemala, formavam a civilização originária que mais dominava a escrita em toda a América. Escreviam, inclusive, livros feitos com tecido recoberto por uma pelÃcula de cal branca sobre a qual pintavam caracteres e desenhavam ilustrações. Os maias também se destacavam por seus conhecimentos arquitetônicos e matemáticos. Criaram, inclusive um calendário por meio da observação dos movimentos da Lua e dos planetas. Os maias também são conhecidos por sua resistência à subjugação aos colonizadores.
Na segunda metade do século XX, milhares de indÃgenas maias (pelo menos 150 mil, de acordo com a ONU) foram mortos na Guatemala, durante a guerra civil do paÃs. Os assassinatos se perpetuaram nos governos ditatoriais que se sucederam. Em 2013, o ex-presidente guatemalteco EfraÃn RÃos Montt foi, inclusive, condenado a 80 anos de prisão por genocÃdio e crime contra a humanidade.
Mãe e filho guajajara, Maranhão. Antonio Cruz, Agência Brasil, creative commons |
O Brasil é o segundo paÃs das Américas com o menor percentual de indÃgenas na composição de sua população. Eles representam apenas 0,5%, (cerca de 900 mil em números absolutos) do total de habitantes, só ficando à frente de El Salvador, onde eles representam apenas 0,2%. Segundo a Cepal, o Brasil é um dos paÃses com os maiores Ãndices de suicÃdio entre indÃgenas. No Amazonas, por exemplo, eles representam 20,9% do total no estado, embora representem apenas 4,9% de sua população. Os Ãndices, no Brasil e nos demais paÃses que têm alta taxa de suicÃdio de indÃgenas – Argentina, Colômbia, Chile, Nicarágua e Venezuela – sugerem, ainda conforme a Cepal, o aumento dos fatores de estresse entre eles, como a pobreza, a fome, as perdas dos mecanismos de organização comunitária e as aceleradas mudanças culturais, com a consequente desestruturação da identidade. Os indÃgenas do Brasil e da América Latina estão, contudo, cada vez mais organizados em prol da defesa de seus direitos, a exemplo da Organização IndÃgena da Colômbia, do Congresso Nacional IndÃgena (México), da Articulação dos Povos IndÃgenas do Brasil e muitas outras entidades, além de deputados que conseguiram eleger.
Distribuição da população indÃgena nas Américas. Wikimedia commons |